sábado, 5 de junho de 2010

A IDIOSSINCRASIA DAS MEXARRAS E DOS TUBARÕES



Em auroras brandas, os saveiros cortavam as águas mornas da ria, levando os homens ao sustento das famílias, em jornas sem horário, de trabalho braçal que o Sol fazia tensão de tornar duro, deixando marcas na pele como custos dos desafios.

O homem sabia o que pisava e o que fazia, numa relação analfabeta à luz dos impositores de hoje, mas muito sentimental no respeito inteligente com as fontes do seu sustento. Cada regueira e cada parchal tinham uma marca funcional, o homem da ria trazia na memória a morada dos caranguejos, das bocas de cava-terra, dos búzios e dos berbigões e ameijoas, estes últimos, uma das razões das azáfamas.

O homem e a ria trouxeram durante mais de um século um casamento de namoro renovado, enquanto a cegueira dos tempos ia construindo um castelo de betão em espaços públicos da harmonia social e da actividade piscatória, que os novos impositores tramam manter em desvantagens estupidamente legalizadas, em mais uma luta do caranguejo trabalhador e residente com os tubarões oportunistas, que se acham donos do que nunca lhes pertenceu.

Uma cidade bafejada e banhada de beleza, com um passado de dívida para satisfação das famílias, que procuraram no esquartejar das lamas e das águas o alimento, e para outros, os proveitos para a falta de salário para o resto do mês, com a evolução dos tempos e dos olhares manhosos, inventaram um paraíso de licenças e imposições que a ciência dos interesses acham ser “a defesa do património”.

Na volta, esse mesmo mar de proibições para os cidadãos que dele dependem ou dele se recriam, para a protecção da mexarra e de outras procriações, pode ser dividido em quarteirões pagos para exploração intensiva e maré alta para os cofres do Estado.

A Ria Formosa deixou de ser igual para todos. Em décadas, do Ancão a Cacela Velha, o espaço e o homem sempre se entenderam com os caprichos da natureza, que reage de forma violenta sobre os desmandos que lhe impõem.

A razão ditou as ordens do convívio e os novos patrões de lei, ditam as ordens sem respeito pela razão.

Da histórica desordem interesseira ao fundamentalismo científico, os pescadores, sem dinheiro para os espaços nobres, são jogados como mercadoria, porque quem julga saber é que manda. Os pescadores têm de saber onde põem os pés e onde lançam o anzol, nas modestas embarcações de risco que onduleiam com a passagem das lanchas rápidas de desfrute da ocasião estival.

As areias arrancadas durante anos aos fundos marinhos, com legalidade de muitos que poderão ter andado nas águas turvas dos lucros, ultrapassaram sempre os raciocínios da intelectualidade próxima do poder e não difere da que ordena no momento. A ria foi rasgada e os danos causados, não tiveram culpados nem acções de recuperação. Muito pode ser feito e quem faz? Os que lançam as proibições? Os pescadores queixam-se… e as mexarras também… da falta de condições…

O ecosistema anda revoltoso, o pessoal de terra também, trazem-nos programas de milhões, divulgado aos saltinhos e com os medos de faltosos, para uma cidade que fez campeões de mar e vento nas estradas de água ao dispor, que entretanto parece ter adormecido sobre tanta fortuna, porventura porque os senhores de terra e mar não deram os incentivos e nem perceberam a riqueza do incremento da náutica, que continua a passar ao longe. Depois do ferrado de choco eleitoral, continuamos na fatalidade da pescaria de deuses com elevado potencial financeiro. A nova doca é só mais um engano?

O que os tempos adiantam em ideias, processos Polis e sucedâneos, não têm trazido serenidade e satisfação aos cidadãos.


Luis Alexandre

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